sábado, 18 de setembro de 2010

Série contos rejeitados

A Nuvem

_Idade?Hein?Idade Senhor, qual sua idade?
O homem olhava, pela janela do décimo segundo andar do Edificio Avenida Central o relógio antigo fincado no meio da praça, em torno do qual andavam muitas pessoas e que era emuoldurado por uma grande nuvem branca.
_Senhor, sua idade por favor.
Estava absorvido pela imagem do relógio, na verdade, a imagem e a pergunta faziam parte de um mesmo universo, o tempo. Aquele presente e aquele que a nuvem branca do esquecimento vinha apagando.
A pergunta não fora de fato ouvida porque mergulhara não sabia em que oceano de memórias que o transportavam a um passado não tão longínquo, mas um pouco distante do atual. Um passado onde sua intransigência e determinação em não mais amar, tinham feito dele um ser sem afeto, ranzinza,chato, metódico e deprimido,um ser que pensava se bastar a si mesmo e fazia apologia disso a quem quer que se aproximasse.
Estava com medo, não do exame, mas da dor, dos estragos do tempo sobre seu corpo e seu cérebro. Estragos de descontrole sobre aquilo que lembrava e esquecia.
Na juventude tinha sido jogador de futebol e sempre gostara de esportes,viajou o mundo em jogos amistosos e campeonatos pelo seu país, não chegou a ser profissional, por mais que jogasse bem, pois achava que o trabalho intelectual era mais nobre.
E assim fez, envolveu-se no mundo das palavras e das teorizações, não obstante, sempre lhe sobrasse um tempinho para o corpo e seu exercício, andava na praia, jogava tenis, montava a cavalo na fazenda quando podia, fazia sexo para cumprir as obrigações do casamento, antes de se divorciar .
Todavia, depois de anos de prática esportiva chegou uma hora que parou por completo, exercitava apenas a mente, queria até mesmo parar com o sexo. Seus amigos já diziam que com a idade isso seria possível, o desejo ía embora e era a completa sublimação, mas naquele momento ainda não experimentara essa condição.
Porém, ao olhar o relógio do alto do edificio veio-lhe a cabeça o que havia dito à última mulher que transava com ele e que era anos mais nova .
Dissera a ela que estava velho e finalmente livre, livre de cobranças de aparência, de beleza, de compromissos sociais.Na juventude tinha sido muito belo, mas que isso não o importava mais, que não fazia nada para manter a forma, para melhorar o visual e que certamente viveria menos que o provável. E, se não fora pelos filhos e por alguma coisa que achava que ainda tinha que terminar, tinha vontade de desaparecer, se refugiar em algum lugar longe de tudo e todos e viver lá isolado, só com alguns livros, de preferência no Fim do Mundo, pois nada mais o interessava, nem mesmo ele. Se achava desinteressante e às vezes tinha vontade de se auto-divorciar.
_Senhor sua idade, preciso preencher o formulário.
A recepcionista já estava cansada de olhar para aquele homem, que por alguma coisa parecia ter se desligado de onde estava, do que fazia, do que dizia respeito àquele lugar.
_Senhor, qual sua idade?
Ele então de repente, como que vindo do além, responde: Tenho 55 senhora.
Cinquenta e cinco, ao mesmo tempo que falava o número se remetia de novo ao quarto, à mulher jovem , bonita que sempre o atendia com o mais insaciável desejo, a mais deliciosa dedicação e generosidade.
Ele sabia que ela o queria, que ela gostava dele, por isso sua dedicação, mas ele não podia aceitar aquilo. E na primeira oportunidade que teve, depois de ano meio de encontros semanais, disse a ela que procurasse outros garotos, outros homens, que o substituisse, que ele estava recluso, terminando seu livro, não tinha mais tempo .
Ela insistente, rogou que não terminasse a relação, mas sem ter sucesso. Ela então deu um prazo, teria paciência de esperar,antes de procura-lo de novo.Mas sabia que ele não a procuraria, ele era teimoso e quando se determinava a não fazer, não fazia, mesmo tendo vontade. Não queria dar margem para ela achar que ele a desejava, já tinha exposto sua regras, encontros sexuais, nada mais, sem afeto, sem carinho, sem nada, apenas isso.
Mas naquela hora, depois que disse a sua idade para a recepcionista, ali no consultório, remoeu tudo que vivera justamente com àquela mulher, a última, aquela que ele conhecera ao acaso de uma aula e que esperara dez anos para finalmente comer. Não que fosse romântico, mas gostava de alimentar um certo fascínio e sedução nela, sem jamais tomar iniciativa.
Lembrava que ela reapareceu porque ele a procurou, mas não a comeu, foi comido por ela, que tomou todas as iniciativas e depois desapareceu. Reaparecia a cada seis meses. E dizia na cara dele que era insuficiente.
Ela, justamente ela, que lhe mostrava o espelho vez por outra. Que não lhe cobrara nada a não ser a potência, o carinho, a brincadeira nas horas do convívio semanal, que ele havia suspenso. Justamente a lembrança dela que ele sempre apagou, não atendendo seus apelos ou email, não deixando que chegasse para lhe dar prazer, , que vinha à sua mente nesse momento.Ela que se dispusera a ficar com ele e aturar a sua velhice precoce. Ela que ele dispensou.
Talvez isso fosse um complô de sua mente regrada, que já agora apresentava sinais de falha e lembrava do que ele queria esquecer, e não do que ele mandava.
De novo a voz ao longe soou: _ Senhor, tomou algum medicamento?
Surpreso com a pergunta, ele desvia o olhar do relógio antigo da praça, deixa o tempo passado fluir e responde:_ Não, não tomo remédios.
Mal responde e a recepcionista receando que ele de novo embarcasse nos desvios da memória lhe manda entrar na cabine e aguardar que logo a máquina de tumografia seria usada. Seu cérebro seria escaneado por um feixe de luz que desvendaria todos os seus mistérios, sua doença, sua dor, seu descaso, seu amor, que ele desconhecia.
Sozinho, sentindo-se agora abandonado, ele entrou na sala, espaço quadrado com uma enorme máquina no meio onde enfiaria sua cabeça, seu tempo, sua vida, a nuvem do seu esquecimento,os prazeres que deixou escapar. Ali temeu, temeu por si, temeu por ter mandado ela partir.

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