sábado, 27 de junho de 2009

novos e velhos escritos



Sentimentos desterritorializados


Na academia se estuda muito o conceito de desterritorialização, não me lembro bem se foi Deleuze , Guatari, Camus ou outro que começou a falar disso e também não me lembro onde foi. Fato é que parece que está todo mundo desterritorializado, coisa da pós-modernidade? Talvez. Uso o termo com uma acepção vulgar, de quem nunca passou por qualquer autor.
Existe uma desterritorialização dos sentimentos. Sentimentos fora do seu território original,criando novos tempos e espaços, novos sentidos e dimensões. Tem gente dando muita importância ao que não tem valor na existência e deixando passar a vida de jeito sem sentido. Tudo bem que a história do valor é pessoal, subjetiva.
O fato é que não temos como saber o que tem valor na vida e o que não tem. Mas há quem ache que saiba, acha que o seu próprio valor é o único que interessa, que todos deveriam tê-lo como modelo.
Voltando à academia é isso que parece acontecer. As pessoas se colocam numa redoma de tal maneira inviolável que nem se deixam penetrar pelas coisas da própria vida. Muitos se tornam verdadeiros sóciofóbicos , vivendo uma vida reclusa, longe de tudo e de todos, apenas no mundo das idéias e “se achando”.
Não sei o que deveria ser, sei que isso acontece, que já foi dramatizado pela arte inúmeras vezes e continua sendo. A dicotomia entre o viver e o escrever sobre a vida.
Uma vez eu disse que viver era o que fazíamos quando não estávamos escrevendo sobre a vida, ou sobre o que outros fazem da sua vida.
Vivermos de verdade, estarmos no mundo, sujeito às suas intempéries, não termos o famoso tempo para pensar sobre. Quando nos retiramos do dia-a-dia, quando nos enclausuramos na imagem, já clichê, da torre de marfim, aí sim, pensamos e traduzimos as mazelas do mundo. As que olhamos, e as que queremos olhar, porque não olhamos todas.
Nosso olhar é algo direcionado, sempre, vemos apenas o que queremos, para nos defender e proteger.
O homem vive num constante estado de auto-proteção. Já saímos das cavernas, já dominamos o meio ambiente, mas continuamos nos protegendo,todo tempo. Nossa necessidade de criar um escudo de defesa permanece. Sempre existirá um inimigo invisível e por isso inexistente, que nos ameaça constantemente. Seja ele o sistema, o patrão, o amor, a sociedade, o tempo, os animais. Tudo é ameaça.
Então lançamos toda nossa energia nesse mecanismo de auto-proteção, para não nos sentirmos violáveis . Queremos ser invioláveis.O medo é o maior dos sentimentos. É o que leva ao estado de estresse e que vai permitir criar a proteção, estar preparado,sempre a espreita.
E se por um momento perdemos essa concentração, aí lá se vai tudo, parece que seremos condenados ao limbo.
E nesse processo ficamos defensivos. Lembro–me do professor do filme do Visconte, Violência e paixão. O sempre defendido professor que num momento perto da morte se depara com uma desarrumação de sua vida, que lhe custará a quebra de seu mecanismo de defesa. A vida supera as expectativas, ela corrompe o estabelecido, ela desordena o que se supunha ordenado, ela bagunça tudo, ela se bagunça, para quebrar o que ficou cristalizado pelo tempo.
Mas do que adianta a bagunça se não conseguirmos dar a ela o seu lugar. Depois da bagunça constituída voltamos correndo aos antigos modelos e queremos logo restabelecer a ordem, a regra que foi violada. (setembro 2008)
Olhares bifurcados

Desde que li uma conto do Borges, que tinha a palavra bifurcação no título fiquei com ela na cabeça, sabia que algum dia , alguma hora escreveria algo em que tivesse a possibilidade de usa-la . Lembro que na época cheguei a escrever uma carta de amor para alguém que tinha comigo encontrado um jardim, mas cujo caminho tinha sido, por falta de coragem, bifurcado, e só retomado anos depois. Como já previa meu caro Álvaro de Campos tal carta era ridícula , tinha que ser, não caberia a ela outra qualidade a não o fato de ser ridícula, como foi ridículo o arrependimento de tê-la entregue em mãos, um minuto depois. Mas passou.
A bifurcação hoje é outra, e é admirável a separação que as pessoas fazem de certos compartimentos de vida. Eu separo tudo, meu cérebro fragmenta as situações, no que tange ao que chamo de resto. Mas já no compartimento emoções, sexo, amor, prazer, aí não há compartimentação, que dirá bifurcação.
Se a coisa acontece mais de uma vez, não tem jeito, já entrei no caminho tortuoso. Já imagino o que vai acontecer. Não me iludo. Quando se for, quando o caminho enfim , mais uma vez, se bifurcar, vai doer . Vou chorar. Vou sentir a falta, mesmo já sabendo que o contrato não previa cláusulas emocionais. Que o trato era de desapego e não envolvimento.
Acontece que saber as regras não nos priva de viola-las. Eu sei, mas nunca respeitei. Eu minto. Digo que respeito,mas não respeito. Eu que sempre me considerei verdadeira, hoje me esparramo de rir de mim mesma e mas ainda dele, que crê que eu respeito todas as regras. Não que o que eu diga seja mentira, não é. É a verdade que eu queria acreditar que fosse. A verdade que eu queria sentir.
A diferença entre sentir e querer sentir. Querer sentir o que deveria ser. Quero sentir que não me faz falta, mas faz. Quero sentir que não sinto saudade, mas sinto. Quero não pensar sempre, mas penso.Quero não pensar, que queria que ele pensasse.
Somos malucos, estranhos, temperamentais, temos idéias bifurcadas e vivemos o tempo todo defendendo os nossos discursos mentirosos de nós mesmos. (setembro 2008)



Ser Estranho

Eu não sou estranho.Tem muitas pessoas mais estranhas do que eu. Comparativamente, é natural que sempre achemos alguém que nos seja mais absurdo que nós mesmos.
Meu amigo de personalidade auto-destrutiva é muito mais estranho do que eu.
Aquela mulher que pinta os cabeços de azul é muito mais estranha que as outras que pintam o cabelo de castanho.
Essa relação de casal não é estranha, àquela do casal do apartamento ao lado é muito mais estranha.
Suas roupas são estranhas. Talvez porque sejam da estação passada ou porque não são minhas.
As idéias me parecem estranhas, os discursos me parecem estranhos, mas deve ser porque não são meus, peguei emprestado de alguns autores que li.




Reflexões


Pensar que depois que nascemos caminhamos necessariamente para a morte, não é nada novo. Novo talvez seja nesse contexto o fato de não conseguir dar conta de saber das
idéias daqueles que todos falam.
Se falam porque conhecem de verdade, muito bem, o problema é quando falam achando que sabem algo que não sabem.
A contradição largamente difundida entre o pensar e o viver, entre o escrever e o viver permanece. Quem escreve e cria não precisaria viver intensamente as coisas pois que sua capacidade de criar e observar vai além e ele se permite através dessas duas capacidades, fingir. Fingir tão bem, que chega a pensar que viveu aquilo que jamais viveu, parafraseando Pessoa.
Entretanto, não é tão simples assim. Quando se vive e escreve, a sensação que se tem é que o pensamento nos trai a cada letra que escrevemos. E temos a clareza de que as palavras jamais darão conta de tudo aquilo que sentimos. Talvez por isso quem viva intensamente não consiga escrever. E quem está um pouco mais paralisado é que dá conta desse universo.
O distanciamento para a escritura é fundamento do ato. Caso contrário tudo fica com um tom assim meio verde pálido, que não esboça nada de interessante.
Pode ser a maior besteira,mas tem formas de discurso que fazem com que essa besteira se torne algo interessante aos olhos do leitor. Isso sem contar o fato de que o leitor, hoje, quer ouvir ou ler o que ele já conhece mais ou menos.
Talvez seja esse o segredo do sucesso de alguns por aí.
Aí o escritor/codificador seja lá como se chame. Senta na sua cadeira e olha sua estante grande ou pequena,sempre um universo misterioso a ser desvendado, isso parece lugar comum. Um lugar a ser perscrutado, independentemente da estante de livros. Paul Auster fala em seu livro de uma estante de catálogos telefônicos. Parece besta, mas com imaginação rica, muito rica, o escritor senta em frente a essa estante e cria uma história para cada nome que aparece ao léu.
Mas desemboquei nesse assunto porque olhando a estante me dei conta de que não tive toda liberdade para ler o que quisesse ler.



Constatação

Sentada a frente da televisão vejo programas e corrijo provas. Que tédio a tarefa de corrigir aquilo que tentamos minimamente passar para quem não quer receber.
O programa interessa mais que as provas, talvez assim eu seja mais boazinha e esqueça que só estou ali intermediando o que meu padrão quer vender e as pessoas querem comprar, eu ali, de bucha. Certas horas a bucha fica completamente inchada, aí tem que espremer, espremer no ralo para sair todo ar, ou toda água e recomeçar.
Atiramos para todos os lados, e quem nos atirará a primeira pedra? precisamos sobreviver. Fácil é a posição de quem desconhece essa realidade e a condena, como se fosse fácil sobreviver em lugares privados como é em lugares públicos. Na verdade, no privado está todo o público, que não sabe porque está ali, que tem a ilusão de que vai alçar voo, talvez ,para quase o mesmo lugar, E nós ali de bucha. O canhão é imenso, poderoso, nos impõe metas, obrigações ardilosas, chatas, inúteis, e a bucha inchando.Lembro-me da máquina kafkiana da “Colônia penal”, parece que estamos nela, e cada dia nos é escrita uma nova sentença, que só complica nossa vida e diminui o que ganhamos. Até a hora de subsumirmos sem mais nenhuma possibilidade de reversão.
Nesse dia o que será que acontecerá? Sempre nos perguntamos, sempre tentamos olhar o papiro que contém a sentença mortal, mas não encontramos, só encontramos a que vai lentamente matando, pequenos escritos, pequenas picadas, para o sangue ir escorrendo aos poucos, causando dor, secando por dentro até o fim, que não é em 12 horas, mas em 30 anos. (Junho 2009)


domingo, 7 de junho de 2009

Reflexos


Entre o amor e a paixão

Demorei muito para perceber a diferença entre amar, amor e paixão. Na idade que tenho sempre busquei irremediavelmente a paixão. Aquele amor que me fizesse sair do chão, aquela coisa hollywodiana que estamos acostumados a ver em filme e novelas.
Entretanto, depois de um tempo vivendo isso que chamamos paixão, entrega profunda, adrenalina,medo de perder e mais um monte de coisas, tudo passa, talvez Cazuza,cantando Melodia tenha razão quando diz, que “coincidência é o amor”. Pois é, chego a conclusão de todos que falavam da diferença e estavam certos.
A paixão é boa mas não é plena, ela cega e nos faz refém, e isso nem sempre é bom, talvez por isso, está cientificamente comprovado, dura pouco. O tempo para que haja a procriação.
A sedução do começo de quando queremos algo que nos parece inatingível.
Entretanto, existem pessoas que não sabem viver o que vem depois da paixão, do estar apaixonado. E sempre quando o primeiro momento acaba elas acham que nada mais existe, e vão em busca de uma nova paixão.
Essas pessoas jamais amam de verdade, talvez nunca tenham amado e se deixado amar.
Elas vivem numa corda bamba, no fio da navalha . Elas acham que só existe amor se houver paixão, e isso não é verdade.
Não ficamos a vida toda apaixonados, é ilusão achar isso.
O amor é algo completamente diferente.
Eu achava que ambos tinham que caminhar juntos, porém agora vejo que é quase impossível essa caminhada concomitante durante muito tempo.
Durante muito tempo sofri sem saber o que fazer quando minhas relações chegavam àquele ponto em que não se tem mais paixão, mas se tem outras coisas, que eu não sabia o que eram.
Para identificar essas outras coisas é que era difícil ,já que vivemos numa sociedade onde as relações são tão consumíveis como um sorvete.
Nem sempre nos satisfazemos e quando a paixão , o momento da sedução primeira acaba, nos vemos sugestionados a dar um basta em tudo. Até porque tudo parece conspirar para isso.

Então ,quando aquela sensação me invadiu parece que olhei toda a minha vida com um outro foco. Descobri o quanto do meu tempo foi voltado para entender algo que não era da essência do amor, que eu parecia sentir pelos homens que tive.
Pensando refiz minha trajetória .Me sinto mais madura nessa fase da vida , sou uma balzaquiana, já casei, já separei, já tive muitos namorados, muitos amores e desilusões.
Esperava do amor exatamente aquilo que aprendemos nos filmes e novelas, esperava a paixão, estar sempre apaixonada e ter alguém apaixonado por mim era meu eterno ideal. Todas as relações começavam assim. Sempre da mesma maneira. Primeiro eu não querendo, depois eu me apaixonando, depois a coisa ficando morna e no fim ao me ver sozinha, eu de novo apaixonada pelo simples fato de ter terminado. Por causa do vazio que isso me causava. Ainda não entendi muito bem por que os términos sempre me levaram a uma dor profunda, e sempre me achava apaixonada pelo indivíduo, depois que ele se ia.
Tenho consciência disso hoje, por ser algo que não quero passar mais,busquei entender e entendi como acontece, mas não entendi o porque acontece, isso deixo para Freud ou qualquer outro desses que desvendam o inconsciente humano. Talvez um sentimento de rejeição ,não sei...
Mas não queria falar do que não entendi. Quero falar daquilo que me pareceu ser desvendado pela pessoa mais improvável. Não que a pessoa tenha desvendado para si, que ela tivesse entendido isso, pois acho que não entendeu, mas a sua fala fez com que eu entendesse, no meu íntimo, o que é o amor e o que é a paixão, a diferença dessas relações e como elas podem interferi na nossa felicidade e vida.
Vários autores dizem que a pessoa que amamos é nosso reflexo, não entendi muito bem isso, mas sei que admiramos no outro o que eles tem de nós mesmos , e isso me fez ver como fui a vida inteira e como acho que não sou mais.
Em uma relação o parceiro me disse que não era apaixonado por mim. Num primeiro momento isso me pareceu doloroso e alvo de uma provável suspensão do que vivíamos , entretanto, depois, pensando sobre o assunto, consegui ver uma outra face nessa história e que se relacionava a mim mesmo.
Coloquei-me numa outra situação e vi que pouco tempo da vida passamos apaixonados, que é algo tão esporádico, que dura tão pouco e é tão efervescente e ao mesmo tempo tão esquisito, não existe relação que viva uma paixão eterna, várias são as formas em que o amor se realiza sem ser apenas pelo campo da paixão.
Duas diferenças são básicas nesse sentido. Quando queremos conquistar alguém ou quando alguém nos conquista vivemos as vezes meses investidos daquele sentimento turbulento, porém quando essa turbulência acaba temos novas coisas para nos despertar na relação.
Se estamos dispostos a amar de verdade temos de ter consciência disso. O amor é algo construído quando queremos, a paixão é algo que nos arrebata mas que nos causa um vazio. O amor pode ter momentos de paixão, mas a paixão independe do amor.
A maturidade nos remete para o amor , remete a valores desconhecidos das coisas que vemos e temos e vivemos. Vemos nas pessoas coisas que na paixão éramos cegos para ver, e que no amor vemos e aceitamos, aí é que está nossa disponibilidade para aceitar o outro como ele é.
Hoje em dia, dado a fugacidade das coisas, ao consumismo, tendemos a ter nas relações o reflexo do consumo, não satisfez troca, sai em busca de outro, entretanto, não nos damos chances de construir e descobrir o amor com as pessoas.
Vamos sempre pulando de galho em galho, relações paralelas, que no fundo só nos deixam mais vazios . Isso é o que vejo em homens e mulheres. Não sou assim, por isso me acho anormal, diferente da maioria.
Não tenho medo do amor, pois isso tenho para dar e vender, mas tenho medo dos tipos de relações, talvez por já ter passado por algumas que eu não tenha entendido.
Ver meu parceiro hoje, me fez me ver, já estive apaixonada por ele , hoje acho que não mais ,porém não acho que isso seja um problema. O que quero é conhece-lo mais, é curtir estar com ele, é construir algo, dividir. Enfim, tudo que é bom, sem receio e com calma. Sei lá, parece que os valores mudaram de foco.
O que ontem, antes, no passado eu queria, não quero mais. Não é mais a paixão que me satisfaz, é outra coisa, somente agora já tendo passado por ela é que consigo ver isso, e me sinto feliz.
Me sinto plena por ter descoberto essa diferença. E ele me fez ver esse fato. Sem querer ele me descortinou algo que há muito me fazia sofrer, acho que toda a minha vida, algo que me fazia suspeitar das minhas relações, que me colocava em cheque, algo que fazia com que eu questionasse e achasse que me davam menos do que eu merecia. Toda a expectativa que eu colocava sobre os parceiros que me envolvia.
Acho que ele não sabe dessa diferença, que me fez ver, busca incessantemente a paixão, as bocas e corpos diversos, muitos sem muito significado. Ele, pelo que vejo, não sabe ainda seu caminho, não sabe que o caminho é o importante, que a sua construção é que importa, seus tijolos e a massa com que eles serão colados. Ele não vê isso ainda, talvez seja ainda imaturo, talvez não tenha vivido o suficiente, ou não se tenha permitido levantar as paredes. Vive a catar tijolos sem buscar massa para cola-los, um sobre o outro. Vive buscando a paixão.
Catando um tijolo aqui, outro acolá, eles são largados no tempo sem nada, e isso faz com que os tijolos apodreçam, e cada vez ele tem que catar novos tijolos para um dia preencher sua parede.
Mas ele não sabe que tem que alicerçar as paredes antes de colocar o tijolo e a massa, o alicerce é o amor, a convivência, não é a paixão. A paixão serve para uma busca preliminar e não para levantar as paredes.
Acho com essa descoberta entendo melhor o que tem se passado na cabeça da grande maioria da pessoas.
Todos querem o imediatismo e nada que dê trabalho ou preocupação, nada que precise regar, nada que implique responsabilidade.
Aí surge uma outra coisa que também é comum nos nossos dias, por não se permitir amar, as pessoas também não sabem ser amadas.
Mas o que é saber ser amado? Essa é uma questão que ainda não está clara. Penso que passa pelo fato de a pessoa se sentir culpada porque a outra o ama . Como se dependesse dela o amor do outro. Aí as pessoas fazem coisas para poder afastar de si aquele ser que a ama.
É como se ela jogasse contra ela mesma.
Não existe quem não se sinta bem em ser amado, mas muitos relutam.
Como saber da cabeça do ser humano. Cada dia pior, cada dia querendo mais, e estando mais só.
Me basta escrever para deixar alguém ler e talvez se identificar.
Rio de Janeiro, 5/1/2006


Novos Contos da cidade

No Castelinho da Garibaldi


Passava das 18 horas quando o bonde que fazia a direção Usina parou em frente ao castelinho da Garibaldi e de dentro saiu um dama antiga. Vestido preto discreto comprido até os joelhos, bolsa pendurada nos ombros, óculos também escuros, nos pés um Chanel preto de salto alto com meias fumê..
Parecia assustada, mas isso não a intimidava no andar. Saltou, esperou o bonde passar, e entrou no castelinho sem nem mesmo tocar a campainha.
Será que ela morava lá? Há muito ninguém mais entrava naquele lugar, quanto mais a essa hora do dia, cinco da tarde. O local parecia abandonado, sem luzes a noite, sem jardins arrumados, sem cores de castelo, diziam os do local que ali tinha ocorrido uma tragédia, as pessoas sempre ficavam a olhar um prédio tão lindo a ser destruído pelo tempo.
Mas naquele dia, as 5 da tarde, algo havia acontecido. Eu estava parado, na esquina da rua quando aquela mulher misteriosa saltou do bonde.
Aquilo atiçou minha curiosidade e espanto. Fiquei a imaginar, o que ela faria ali dentro, se teria alguém que nunca saía, um ser decrépito, misterioso, que tinha sobrevivido ao trágico infortúnio de sua existência .
A hora foi passando e eu não conseguia sair daquele lugar, aquela esquina onde me encontrava, minha mente se enchia com as histórias que eu criava e imaginava estarem acontecendo lá dentro.Estava no meu íntimo esperando que ela saísse para que eu adivinhasse pelos seus passos e seus olhos o que teria acontecido .
Uma hora, duas horas , três horas, quando deu 8 da noite de novo o portão se abriu, ela saiu como entrou, silenciosamente, na sua face não tinha lugar para ansiedade, sentia de longe que estava mais tranqüila do que quando entrou,as 5 horas.
Ela atravessou a rua, eu de longe a olhava, parou no ponto e logo o bonde das 8 chegou. Ela tomou o bonde, sentou-se na terceira fileira, cruzou as pernas como quem se acomoda para o tempo passar, os óculos escuros não estavam mas no seu rosto, o apito soou. O bonde saiu. E eu ali embevecido, sem saber quem era, se era, acordei, já era hora do jantar.

16/05/2009.


Cotidiano de uma tragédia

Naquele dia bonde atrasou. A fila grande dobrava a esquina e criava ansiedade nos que chegavam. Seis da tarde, barulho de rush, todos os ônibus lotados,inferno atravessar a cidade a essa hora. E fila aumentava cada minuto e nada do bonde.
De repente a chuva começa, pessoas espremiam-se sob uma marquise descascada , onde se via o ferro da laje . A chuva fica mais forte e num piscar de olhos a multidão se desespera. Pessoas correndo para todos os lados, mulheres gritando, crianças berrando, homens atordoados sem saber o que fazer. A sirene dos bombeiros soa forte, homens de macacão afastam as pessoas e começam a levantar os pedaços de laje.
A frente uma criança chora, a mãe está embaixo e ela sozinha não tem para quem correr. A marquise tinha caído. Não tinha mais o que fazer. Os bombeiros acodem como podem, a ambulância chega,a mulher é retirada dos escombros e a criança corre em sua direção. Mãe e filha se abraçam, a vida parece que ressurge.

Cidade sem memória.


Passava das 5 horas da tarde de quinta feira quando enfim a noticia da morte havia chegado à pequena cidade. O calor era intenso, mês de janeiro, e o verão castigava o solo de pedra e seus habitantes bronzeados. Todos na localidade conheciam aquela saga vivida por um homem e uma mulher em busca da vida e do romance. Porém, não era mais uma história de amor, ligada dramas shakespearianos da proibição, mas uma história de vida de rejeições e sentimentos perturbados.
Eram os personagens, indivíduos comuns, que buscavam apenas sobreviver, e registravam onde passavam seus descontentamentos e seus questionamentos, suas agonias, ansiedades e dores. Porém, tudo chegara ao fim, ou ao começo, já que não ninguém, sabe bem de onde vem nem para onde vai.
Começou numa hora improvável, inúmeras pessoas num mesmo local, com objetivos idênticos, matar o calor que sobre suas cabeças imperava. Foi assim que se conheceram. Ninguém dizia que aquela mulher que acabara de se encarregar de seu amor poderia estar ali selando sua passagem para um outro espaço e uma outra forma de ver a vida. Ele, por sua vez, jamais suporia ter em sua existência algo tão desafiador, nem mesmo olhava-a nos olhos pois tinha receio do reconhecimento trazer-lhe lembranças fugidias que preferia esquecer.
Mesmo assim, o encontro se deu, depois do primeiro, um novo encontro, mais outro e outro, num total de 51 vezes. Toda a coisa parecia confluir, eram conversas, realizações, medos, angústias e planos que os envolviam . Porém algo de estranho estava no ar. Algo como um medo inerente ao próprio ser, se encarregava de não deixa-los viver. Não se permitiam questionar o que era aquilo, mas o incômodo permanecia. Vinham de vivências outras e aquele momento talvez ainda não fosse o certo, mas como tudo, foi se arrastando. Em meio às 51 vezes a intensidade era enorme, buscavam em prazeres mútuos compensar aquilo que não sabiam existir. Aos poucos a necessidade foi surgindo, a dificuldade primeira em abrir a flor foi, depois de um tempo, tida como lenda e em inúmeras paisagens flores e galhos comungaram de grande êxtase nos jardins, que no principio pareciam não ter força suficiente para fazer brotar orquídeas e tinhorões.
O tempo foi passando até que se soube por toda cidade que uma febre estava por chegar com os ventos vindo de uma quarentena, em lugarejo visinho.
Os habitantes se preocuparam, não sabiam os efeitos do mal, e desconheciam os sintomas, além do mais, o preconceito contra os doentes era algo arraigado sem suas mentes.
Sem pedir licença o mal foi se chegando e sendo transmitido, de pessoa para pessoa, e os sintomas foram se agravando. Mas era um mal tão sorrateiro que não deixava que os atacados se apercebessem dos seus estragos, primeiro ele causava uma enorme ansiedade, não se sabia de que, depois uma tristeza profunda, seguida de uma inércia parecida com a trazida pelo calor, seguindo nos sintomas, aparecia o que se chamava de ausência, homens, mulheres e crianças não sabiam,simplesmente não sabiam, seja lá o que fosse, qualquer pergunta os atirava ao poço, não conseguiam saber nada, queixavam-se de tudo e tendiam a dizer que nada sentiam e a fugir de quem os colocasse a prova para ver se tinham o mal.E por fim, o auge dos sintomas, o não reconhecimento de si e do que sentiam.
A febre foi de grande estrago na cidade, isso porque, ao serem acometidos os indivíduos não se reconheciam e julgavam que não eram o que eram, não sentiam o que sentiam, uma enorme confusão entre o ser e o não ser, o gostar e o não gostar, o ter e o não ter, ninguém mais se entendia, filhos não conheciam mais os pais, mães não sabiam quem eram seus filhos, nem o que sentiam por eles, casais não se viam mais como tal, pois que o mal camuflava seus sentimentos e os confundia diante das reações vitais.
Ninguém mais levava vida normal, os trabalhos eram burlados, os estudos largados e até mesmo as fornicações deixaram de existir na cidade pois os sintomas deixados pelo mal, inibia os instintos mais animais dos seres humanos, o sexo e a procriação.
Em meio a essa catástrofe aquele homem e aquela mulher não ficariam imunes, marcados como todo o resto da cidade, também eles se desconheceram quando o mal se instalou. Vinham de uma série de encontros, mas quando a febre chegou, no momento seguinte eles não mais sentiam seus instintos básicos e a confusão que se dava no resto, também com eles se deu, não sabiam mais quem eram, nem o que os envolvia, não sabiam mais nada. Dessa forma, os encontros cessaram com a sensação de terem sidos interrompidos numa hora que não era, e por uma causa que não era deles, mas de fora.
O mal progrediu, afetando mais gente do que as autoridades supunham e deixando a cidade perdida , desmemoriada .

A conversa

Depois de uma simples conversa de prática religiosa pelo Msn, pois não se tem coragem de faze-lo em viva voz, o personagem solta uma pérol...