sábado, 27 de junho de 2009

novos e velhos escritos



Sentimentos desterritorializados


Na academia se estuda muito o conceito de desterritorialização, não me lembro bem se foi Deleuze , Guatari, Camus ou outro que começou a falar disso e também não me lembro onde foi. Fato é que parece que está todo mundo desterritorializado, coisa da pós-modernidade? Talvez. Uso o termo com uma acepção vulgar, de quem nunca passou por qualquer autor.
Existe uma desterritorialização dos sentimentos. Sentimentos fora do seu território original,criando novos tempos e espaços, novos sentidos e dimensões. Tem gente dando muita importância ao que não tem valor na existência e deixando passar a vida de jeito sem sentido. Tudo bem que a história do valor é pessoal, subjetiva.
O fato é que não temos como saber o que tem valor na vida e o que não tem. Mas há quem ache que saiba, acha que o seu próprio valor é o único que interessa, que todos deveriam tê-lo como modelo.
Voltando à academia é isso que parece acontecer. As pessoas se colocam numa redoma de tal maneira inviolável que nem se deixam penetrar pelas coisas da própria vida. Muitos se tornam verdadeiros sóciofóbicos , vivendo uma vida reclusa, longe de tudo e de todos, apenas no mundo das idéias e “se achando”.
Não sei o que deveria ser, sei que isso acontece, que já foi dramatizado pela arte inúmeras vezes e continua sendo. A dicotomia entre o viver e o escrever sobre a vida.
Uma vez eu disse que viver era o que fazíamos quando não estávamos escrevendo sobre a vida, ou sobre o que outros fazem da sua vida.
Vivermos de verdade, estarmos no mundo, sujeito às suas intempéries, não termos o famoso tempo para pensar sobre. Quando nos retiramos do dia-a-dia, quando nos enclausuramos na imagem, já clichê, da torre de marfim, aí sim, pensamos e traduzimos as mazelas do mundo. As que olhamos, e as que queremos olhar, porque não olhamos todas.
Nosso olhar é algo direcionado, sempre, vemos apenas o que queremos, para nos defender e proteger.
O homem vive num constante estado de auto-proteção. Já saímos das cavernas, já dominamos o meio ambiente, mas continuamos nos protegendo,todo tempo. Nossa necessidade de criar um escudo de defesa permanece. Sempre existirá um inimigo invisível e por isso inexistente, que nos ameaça constantemente. Seja ele o sistema, o patrão, o amor, a sociedade, o tempo, os animais. Tudo é ameaça.
Então lançamos toda nossa energia nesse mecanismo de auto-proteção, para não nos sentirmos violáveis . Queremos ser invioláveis.O medo é o maior dos sentimentos. É o que leva ao estado de estresse e que vai permitir criar a proteção, estar preparado,sempre a espreita.
E se por um momento perdemos essa concentração, aí lá se vai tudo, parece que seremos condenados ao limbo.
E nesse processo ficamos defensivos. Lembro–me do professor do filme do Visconte, Violência e paixão. O sempre defendido professor que num momento perto da morte se depara com uma desarrumação de sua vida, que lhe custará a quebra de seu mecanismo de defesa. A vida supera as expectativas, ela corrompe o estabelecido, ela desordena o que se supunha ordenado, ela bagunça tudo, ela se bagunça, para quebrar o que ficou cristalizado pelo tempo.
Mas do que adianta a bagunça se não conseguirmos dar a ela o seu lugar. Depois da bagunça constituída voltamos correndo aos antigos modelos e queremos logo restabelecer a ordem, a regra que foi violada. (setembro 2008)
Olhares bifurcados

Desde que li uma conto do Borges, que tinha a palavra bifurcação no título fiquei com ela na cabeça, sabia que algum dia , alguma hora escreveria algo em que tivesse a possibilidade de usa-la . Lembro que na época cheguei a escrever uma carta de amor para alguém que tinha comigo encontrado um jardim, mas cujo caminho tinha sido, por falta de coragem, bifurcado, e só retomado anos depois. Como já previa meu caro Álvaro de Campos tal carta era ridícula , tinha que ser, não caberia a ela outra qualidade a não o fato de ser ridícula, como foi ridículo o arrependimento de tê-la entregue em mãos, um minuto depois. Mas passou.
A bifurcação hoje é outra, e é admirável a separação que as pessoas fazem de certos compartimentos de vida. Eu separo tudo, meu cérebro fragmenta as situações, no que tange ao que chamo de resto. Mas já no compartimento emoções, sexo, amor, prazer, aí não há compartimentação, que dirá bifurcação.
Se a coisa acontece mais de uma vez, não tem jeito, já entrei no caminho tortuoso. Já imagino o que vai acontecer. Não me iludo. Quando se for, quando o caminho enfim , mais uma vez, se bifurcar, vai doer . Vou chorar. Vou sentir a falta, mesmo já sabendo que o contrato não previa cláusulas emocionais. Que o trato era de desapego e não envolvimento.
Acontece que saber as regras não nos priva de viola-las. Eu sei, mas nunca respeitei. Eu minto. Digo que respeito,mas não respeito. Eu que sempre me considerei verdadeira, hoje me esparramo de rir de mim mesma e mas ainda dele, que crê que eu respeito todas as regras. Não que o que eu diga seja mentira, não é. É a verdade que eu queria acreditar que fosse. A verdade que eu queria sentir.
A diferença entre sentir e querer sentir. Querer sentir o que deveria ser. Quero sentir que não me faz falta, mas faz. Quero sentir que não sinto saudade, mas sinto. Quero não pensar sempre, mas penso.Quero não pensar, que queria que ele pensasse.
Somos malucos, estranhos, temperamentais, temos idéias bifurcadas e vivemos o tempo todo defendendo os nossos discursos mentirosos de nós mesmos. (setembro 2008)



Ser Estranho

Eu não sou estranho.Tem muitas pessoas mais estranhas do que eu. Comparativamente, é natural que sempre achemos alguém que nos seja mais absurdo que nós mesmos.
Meu amigo de personalidade auto-destrutiva é muito mais estranho do que eu.
Aquela mulher que pinta os cabeços de azul é muito mais estranha que as outras que pintam o cabelo de castanho.
Essa relação de casal não é estranha, àquela do casal do apartamento ao lado é muito mais estranha.
Suas roupas são estranhas. Talvez porque sejam da estação passada ou porque não são minhas.
As idéias me parecem estranhas, os discursos me parecem estranhos, mas deve ser porque não são meus, peguei emprestado de alguns autores que li.




Reflexões


Pensar que depois que nascemos caminhamos necessariamente para a morte, não é nada novo. Novo talvez seja nesse contexto o fato de não conseguir dar conta de saber das
idéias daqueles que todos falam.
Se falam porque conhecem de verdade, muito bem, o problema é quando falam achando que sabem algo que não sabem.
A contradição largamente difundida entre o pensar e o viver, entre o escrever e o viver permanece. Quem escreve e cria não precisaria viver intensamente as coisas pois que sua capacidade de criar e observar vai além e ele se permite através dessas duas capacidades, fingir. Fingir tão bem, que chega a pensar que viveu aquilo que jamais viveu, parafraseando Pessoa.
Entretanto, não é tão simples assim. Quando se vive e escreve, a sensação que se tem é que o pensamento nos trai a cada letra que escrevemos. E temos a clareza de que as palavras jamais darão conta de tudo aquilo que sentimos. Talvez por isso quem viva intensamente não consiga escrever. E quem está um pouco mais paralisado é que dá conta desse universo.
O distanciamento para a escritura é fundamento do ato. Caso contrário tudo fica com um tom assim meio verde pálido, que não esboça nada de interessante.
Pode ser a maior besteira,mas tem formas de discurso que fazem com que essa besteira se torne algo interessante aos olhos do leitor. Isso sem contar o fato de que o leitor, hoje, quer ouvir ou ler o que ele já conhece mais ou menos.
Talvez seja esse o segredo do sucesso de alguns por aí.
Aí o escritor/codificador seja lá como se chame. Senta na sua cadeira e olha sua estante grande ou pequena,sempre um universo misterioso a ser desvendado, isso parece lugar comum. Um lugar a ser perscrutado, independentemente da estante de livros. Paul Auster fala em seu livro de uma estante de catálogos telefônicos. Parece besta, mas com imaginação rica, muito rica, o escritor senta em frente a essa estante e cria uma história para cada nome que aparece ao léu.
Mas desemboquei nesse assunto porque olhando a estante me dei conta de que não tive toda liberdade para ler o que quisesse ler.



Constatação

Sentada a frente da televisão vejo programas e corrijo provas. Que tédio a tarefa de corrigir aquilo que tentamos minimamente passar para quem não quer receber.
O programa interessa mais que as provas, talvez assim eu seja mais boazinha e esqueça que só estou ali intermediando o que meu padrão quer vender e as pessoas querem comprar, eu ali, de bucha. Certas horas a bucha fica completamente inchada, aí tem que espremer, espremer no ralo para sair todo ar, ou toda água e recomeçar.
Atiramos para todos os lados, e quem nos atirará a primeira pedra? precisamos sobreviver. Fácil é a posição de quem desconhece essa realidade e a condena, como se fosse fácil sobreviver em lugares privados como é em lugares públicos. Na verdade, no privado está todo o público, que não sabe porque está ali, que tem a ilusão de que vai alçar voo, talvez ,para quase o mesmo lugar, E nós ali de bucha. O canhão é imenso, poderoso, nos impõe metas, obrigações ardilosas, chatas, inúteis, e a bucha inchando.Lembro-me da máquina kafkiana da “Colônia penal”, parece que estamos nela, e cada dia nos é escrita uma nova sentença, que só complica nossa vida e diminui o que ganhamos. Até a hora de subsumirmos sem mais nenhuma possibilidade de reversão.
Nesse dia o que será que acontecerá? Sempre nos perguntamos, sempre tentamos olhar o papiro que contém a sentença mortal, mas não encontramos, só encontramos a que vai lentamente matando, pequenos escritos, pequenas picadas, para o sangue ir escorrendo aos poucos, causando dor, secando por dentro até o fim, que não é em 12 horas, mas em 30 anos. (Junho 2009)


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